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Monday, May 30, 2005

SEBASTIÃO SALGADO - Maneiras de ver a América Latina

John Mraz
É historiador e pesquisador no Instituto de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Autônoma de Puebla - México.

Tradução:
Geraldo A. Lobato Franco




Sebastião Salgado tem-se tornado legendário no fotojornalismo. Brasileiro de nascimento, de pais da classe média, formou-se em Economia e trabalhou algum tempo no Ministério da Fazenda, deixando o país em 1969 devido à participação na luta estudantil contra a ditadura militar. Foi para Paris onde seguiu cursos doutorais naquela disciplina entre 69 e 71, época que descobriu a fotografia graças a uma câmera que Léila Wanick, sua mulher, havia comprado para os estudos dela em Arquitetura. Empregado na Organização Internacional do Café, baseada em Londres, começou a tirar fotos em numerosas viagens que fez à África, enquanto pesquisava a diversificação de plantações da arrubiácea; afinal, dali em diante cativou-se com a arte: “Quando voltei a Londres, as fotos me deram dez vezes mais prazer que os relatórios econômicos que tinha de escrever.”

A sua final decisão sobre a mudança de carreira foi motivo de luta por um par de anos quando finalmente deixou o emprego para dedicar-se à fotografia exclusivamente. Começando como fotojornalista autônomo para as agências Sigma e Gamma, passou para a Magnum, a mais prestigiosa delas, base de trabalho de grandes nomes como Robert Capa, Henri Cartier-Bresson e Eugene Smith, para mencionar uns poucos. Em 1994 deixou a Magnum e montou a Amazonas Images. À parte a onipresença de seu trabalho fotográfico em revistas e jornais, tem publicado livros de distribuição considerável, montado importantes exposições fotográficas e recebido um reconhecimento na medida de sua significativa produção.

Mesmo tendo coberto as guerras na Angola e no Saara Espanhol, os israelitas aprisionados em Entebe, os incêndios de poços de petróleo no Kuwait e a tentativa de assassinato de Ronald Reagan, conhecem-no melhor pelos seus projetos documentais de longa duração sobre a fome e os trabalhadores migrantes ao redor do mundo. A pesar da enorme rede lançada, a América Latina tem sido a sua pedra de toque; afirma que tem sempre percebido e fotografado o mundo com o seu olhar Latino-americano:

Afinal você fotografa com tudo o que você é. Venho de
um país subdesenvolvido onde os problemas sociais são
muito intensos. E assim torna-se inevitável que as minhas
fotos reflitam isso... creio que exista uma forma latinoamericana
de se ver o mundo. É algo que não se pode
ensinar, porque simplesmente faz parte de você.


Começou a produzir imagens da América Latina em 1977 com o seu primeiro livro focalizando a área, Other Americas (Outras Américas), aparecido simultaneamente em inglês, francês e espanhol, em 1986. A fome que observara no Nordeste brasileiro moveu-o a voltar a fotografar a fome do Sahel africano (onde havia iniciado sua carreira de fotojornalista em 1973 cobrindo a seca da região) e em 1984-85 colaborou no grupo francês Médicos sem fronteiras, na produção de Sahel, o homem em desgraça. De 1986 a 1992 dedicou-se a fotografar o trabalho humano em todo o mundo, um empreendimento que resultou numa enorme exposição e um livro robusto, ambos intitulados Workers (Trabalhadores). Em 1993 voltou as suas câmeras ao compromisso com os refugiados e migrantes, produzindo a enorme exposição Migrations (Migrações) exibida e publicada em 2000. No trabalho em projetos internacionais não negligenciou a América Latina: Salgado tornou-se ativamente absorvido com o trabalho do movimento dos Sem Terra, a revolta dos camponeses brasileiros esbulhados, preocupação que resultou num segundo livro sobre a região: Terra: Struggle of the Landless (Terra: as lutas dos Sem-terra).

Enquanto o trabalho de Salgado tem fornecido muita água aos moinhos dos críticos e intelectuais, raramente selecionaram-no como representação local, quanto a sua transformação no tempo. Refletir sobre como Salgado tem mostrado a sua pátria oferece uma oportunidade única para se examinar as formas pelas quais um criador de imagens de primeira classe dessa região escolhe mostrar o universo do qual surgiu. Sublinharei as suas caracterizações latino-americanas contrastando a representação de Other Americas, Terra e Migrations, pois acredito que uma considerável mudança de tom e ênfase tem ocorrido na trajetória desses trabalhos.

Também irei comparar as formas criadoras de imagens de sua terra natal às de fotógrafos mexicanos seletos como Manuel Álvarez Bravo, Nacho López, Héctor García e os que descrevi como Os Novos Fotojornalistas. Ao justapor essas visões divergentes poder-se-á mostrar o perfil das formas distintas com que a região tem sido e pode ser representada.

Salgado levou sete anos (de 1977 a 1984) vasculhando a América Latina para produzir o que descreveu como sendo “uma exploração meditativa das culturas camponesas e da resistência cultural”. Não obstante as suas boas intenções, a impressão avassaladora que se tem, deixada pelas suas fotos em Other Americas, é que tudo ali seja tristeza, miséria e ruína. Paralela ao foco trágico está a tonalidade dominante de mistério. Tudo aparece contido numa incompreensível e inexplicável delitescência, tornando enigmática a fome, a pobreza e a morte que aparecem no livro. Evidentemente esses cânceres sociais não são o resultado das tremendas diferenças sociais da região, porque não estão documentados nas fotos do livro. Nem são eles produto das megacidades, sujas e superpopuladas, sem os mínimos serviços, pois as favelas, sempre em crescimento, também ali não aparecem. Os trabalhadores urbanos e suas famílias que vivem e trabalham nas metrópoles – e que hoje constituem a maioria da população – estão ausentes em Other Americas de Salgado. Ao assestar as suas lentes às culturas rurais, afirmou que tais problemas eram simplesmente parte da paisagem. Mas, qual seria o significado desse enfoque?

A mais imediata e importante conotação é que esses problemas sejam naturais à América Latina, enraizados em tradicionais formas de ser. Quando Salgado produzia Other Americas, não creio que realmente acreditasse que a miséria da região fosse produto da natureza, mas sim de forças históricas, tais como o capitalismo dependente, o imperialismo e o neo-liberalismo. Sinto-me tentado a opinar que caiu numa cilada comum aos latino-americanos que crêem que devam representar as suas pátrias em termos pitorescos, até grotescos, que com freqüência constituem o discurso aceito e corrente nos países em desenvolvimento para se discutir o Terceiro Mundo – tendência que tem se evidenciado em muitas representações do México, de 1920 ao presente. Em Other Americas, Salgado ofereceu aos seus consumidores na Europa e nos Estados Unidos o que esperavam e queriam, da mesma forma que fizeram os primeiros vendedores de estereótipos: o diretor de cinema mexicano Emílio Fernández El Indio e seu cinegrafista Gabriel Figueroa, cujos filmes – populados por estranhos indiozinhos de pijamas brancos, charros (cowboys) a cavalo sob os seus sombreros de abas largas e camponesas envolvidas em chales exóticos – começaram a impressionar os juizes de filmes de festivais internacionais, há sessenta anos.

Entretanto, em Other Americas, Salgado transportou-os ainda mais adiante ao ligar a alienação às culturas camponesas. A tristeza, a miséria, a morte e o enigma estão onipresentes no conteúdo dessas imagens; a alienação se expressa, em essência, via estruturas formais: luzes e sombras separam os indivíduos entre si, janelas e portas dividem as pessoas ao invés de comunicá-las, olhares furtivos se entrecruzam, mas não se encontram. Por que motivo essa alienação? Comumente associamo-la à industrialização e urbanização, à mecanização da vida, porém Salgado ignorou solenemente a América Latina moderna em seu livro, focalizando a vida rural. Desta forma poderia vender ao mundo desenvolvido a alienação que tão bem conhece com um toque interessante, vestida em roupagem exótica de través a um pano de fundo pitoresco. Os europeus e norte-americanos que compram essas imagens publicadas, teriam pouco interesse em fotos do proletariado industrial latinoamericano, pois conhecem-no muito bem em suas próprias sociedades. Mas a alienação dos indivíduos que incorporam a alteridade (otherness) orientalista, parece claro, é um animal decididamente de outra coloração.

Um pai boliviano abraçado por suas filhas: porque parece tão inamistoso e ressentido ao devolver o olhar pasmo da câmera pelo canto dos olhos? Pessoas que se reúnem numa festa de casamento no Brasil: porque parecem tão sombrias? Um casal de equatorianos que sobraça um cachorrinho peludo branco e um passarinho, enquanto ao fundo nas montanhas se formam nuvens e fazendo-lhes parecer angustiados, cansados e preocupados. Enfim, não posso deixar de surpreender-me se a sua criação de Other Americas foi em parte tentativa de aplicar a estética existencial de The Americans, de Robert Frank à América Latina. O retrato dos Estados Unidos de Frank como uma cultura áspera, triste e alienada mostrou uma percepção desconhecida até a época de sua publicação no fim dos anos 50, considerada por ter redefinido a fotografia norte-americana, num trabalho que foi reimpresso muitas vezes. Não seria invulgar que Salgado buscasse ali a inspiração para construir a aparência de Other Americas.



Comparar a representação de temas particulares neste livro com o tratamento dado por fotógrafos mexicanos pode nos conduzir à distinção de certas diferenças de ênfase. Por exemplo, Salgado tem obsessão pela morte: às vezes resvala no grotesco – um brasileiro, com as pernas abertas, defronte a uma cova onde jaz, fora do caixão, o cadáver de uma mulher; d’outras vezes nota-se a pura angústia – umas mexicanas choram num funeral; com freqüência é enigmático – um índio peruano gesticula incompreensivelmente num cemitério deserto; ainda, pode evidenciar alienação – brasileiros colocados em covas separadas de modo a enfatizar a separação entre eles. Em reflexão a ubiqüidade, a morte tem sido um importante assunto para os artistas mexicanos e expressões culturais de grande riqueza têm surgido ao seu redor, tais como as famosas litografias de José Guadalupe Posada das calaveras (caveiras). Ou Frida Hartz, que capturou a inconsolabilidade da morte na foto da viúva mexicana do campesino, assassinado porque insistia em reclamar os seus direitos. Entretanto, em Other Americas, Salgado não parece reconhecer que a morte esteja em contexto: quando tantos morrem por razões econômicas, faz parte da vida. Mas se a morte não deve ser celebrada, pode-se ao menos rir na sua cara, como fez Nacho Lopez na sua imagem de um homem com um sorriso meramente visível, cuja altura está sendo medida na frente de uma loja de caixões. Outra opção é o comentário cômico que, com justiça, tornou Manuel Álvarez Bravo famoso: em Señal, Teotihuacán, umas garotas mostram-se, como se transfixas, olhando um anúncio enorme pintado na parede de uma funerária. Entre as palavras CAJAS (CAIXÕES) e MORTUÁRIAS, aparece uma mão negra cujo dedo aponta para onde se possa adquirir caixões, em direção ao grande além. Um relógio no pulso nessa mão serve como um lembrete macabro do tempo que ainda existe, exceto pelo fato que seja pequeníssimo, como se um homem estivesse usando um relógio feminino. Uma jovem aparenta recuperar o fôlego, frente à mortalidade explicitada, levando a mão à boca, enquanto outras duas – fantasmagóricas em seus movimentos - parecem já se encaminhar à terra prometida.

A insistência evidenciada em Other Americas ao documentar a futilidade do consolo na América Latina é manifesta numa imagem do dia de finados (Todos os Santos). Tomada num cemitério mexicano, os tons opacos e esfumaçados criam uma imagem insondável em que um cão domina o primeiro plano, enquanto as pessoas estão perdidas por detrás, no fog. Se a presença de um cão num cemitério pode ser chocante às sensibilidades norte-americanas, não há nada de misterioso nesse Todos os Santos, momento em que as famílias se encontram para limpar as tumbas e se reunir com os desaparecidos queridos. Assim o Finados em essência é oposto ao que Salgado representa nessa imagem, o que pode ser claramente entendido ao compará-la às de Álvarez Bravo, Nacho López ou dos Hermanos Mayo, das famílias que se mostram reunidas nos cemitérios nessas datas. O espírito vivo de celebração, o seu contente desafio à mortalidade, é bem representado pelas fotos de Álvarez Bravo, tais como a da jovem sorridente que tem às mãos uma caveira de açúcar cristal com a palavra AMOR escrita à testa.



Em Other Americas a paixão pela morte e o desespero pode ser vista nas crianças brasileiras que brincam no chão com ossinhos de animais. Aqui, enquanto alude à morte, Salgado também enfatiza a pobreza evidente na ausência de brinquedos verdadeiros. O tom psicológico da foto é dado na expressão solene da face das crianças e na sua prostração ao solo. Ao capturar esta cena de cima, Salgado envia a sua mensagem claramente: que resposta a mais, outra que a resignação, seria possível face à tamanha miséria? A foto de Nacho López de crianças pobres brincando com um rato oferece-nos uma resposta. Vemos crianças presas na armadilha de uma das paupérrimas vizinhanças da Cidade do México, também sem brinquedos, reduzidas a encontrá-los onde possível, no caso um rato, o objeto de suas brincadeiras. López denuncia essa situação, mas se recusa a manter-se fixo em quão deprimente ela o seja. A imagem expõe as precárias condições sanitárias da favela e demonstra a pobreza das crianças, mas clarifica também como a criatividade pode florescer em meio à necessidade. Além disso, Lopez realça a iniciativa dos meninos por meio de duas estratégias formais: de um lado, o ângulo baixo escolhido concede poder às crianças no quadro; de outro, as crianças interagem consigo, olhando para a câmera.

A morte de animais em Other Americas é possuída de uma inexplicável aflição. Um jovenzinho mexicano coloca-se próximo a um bode morto, escalpelado e pendurado a uma árvore. Uma corda sustenta-lhe a cabeça – permitindo-lhe devolver uma certa mirada à câmera – uma pata está presa para cima, como se estivesse acenando misteriosamente. Próximo ao espetáculo mórbido um jovem firma a vista fixamente à câmera que olha de cima para baixo da cena. Compare-se esta imagem com a do vendedor de galinhas mortas de Nacho Lopez, que carrega uma verdadeira floresta delas à mão, com a face quase coberta por seus pescoços desplumados. Apesar de se tratar de uma imagem assustadora, não é grotesca nem enigmática: o pollero (vendedor de galinhas) simplesmente está transportando a sua mercadoria para vendê-la. Enfim, a imagem demonstra o toque de humor irônico, transmitido pela documentação de Lopez das justaposições inerentes ao surreal que tão freqüentemente se apresentam no México.

Em Other Americas até a natureza da América Latina aparece angustiada. O cacto, por exemplo, é uma planta que tem servido com freqüência como veículo para as reflexões dos fotógrafos sobre o México e a mexicanidade. Nas imagens de Salgado, um agave isola as crianças mexicanas, que são retratadas dentro de suas pontas afiadas, parecendo ameaçá-las e aprisioná-las, um símbolo à dor cotidiana da vida nestas partes do mundo. Essa não é a conotação que nos oferece Edward Weston àquela planta, em imagens que a retratam em sua forma majestática e exuberante. Nem se encontra entre os significados que Álvarez Bravo determinou para essa forma vegetal nas variadas explorações desse símbolo nacional, talvez com bom humor, quando modernizou o agave, fazendo aparecer o estame central que se ergue ao centro da planta quando em floração, convertido numa antena de televisão. A forma pela qual Salgado apresenta o cacto é destituída da complexidade crítica da foto de Héctor García, “Corona de Espinas”. Nessa imagem de García, um trabalhador numa plantação de henequén (sisal) luta sob a carga pesada que transporta com o auxílio de uma tira à testa, capturando o trabalhador braçal no momento em que uma planta viva, no pano de fundo, forma uma coroa. Com isto García cria uma poderosa metáfora, numa concatenação religiosa e política.

Será que Other Americas pode oferecer alguma fórmula para escapar do discurso pouco entusiasmado criado por suas imagens? Poderia a política ou a religião oferecer uma resposta à opressão ali fotografada? O livro negligencia a luta política e de classes. Apesar de o autor ter explicitamente declarado não ser religioso e não acreditar em deus, outros têm apontado em sua obra imagética um significado religioso. Por exemplo, William Shawcross e Frances Hodgson asseveraram que “Muitas das fotos de Salgado parecem posicionadas na longa tradição cristã da iconografia do sofrimento.” Mesmo assim trata-se de um sofrimento do qual não há salvação porque a religião nada mais é que outra carga para os mexicanos que carregam vigas às costas como se fossem cruzes. Em Other Americas, a religião ou não oferece soluções – algo evidente nos ombros curvos e na expressão interrogativa de um campesino mexicano de frente a uma igreja coberta de névoa – ou apresenta simplesmente outra oportunidade de retratar o enigmático, como na imagem dos equatorianos que cobrem a face com uma bandeira religiosa. As imagens de Other Americas não contêm a aparente fé religiosa dos devotos pobres de Nacho López, ajoelhados em frente à Virgem de Guadalupe, nem a mistura de religiosidade e modernidade vista no trabalho de Guillermo Castrejón, uma freirinha sustentando um aparelho de televisão à cabeça, onde o Papa aparece durante a visita ao México. Obviamente, nada de Other Americas liga a religião aos seus projetos progressistas, tais como a Teologia da Liberação ou a revolução, como no caso de El Salvador.

Dado que Salgado apareça tão genuinamente preocupado com a condição dos despossuídos de poder, talvez mais ainda em sua terra natal, pode-se perguntar: Como é que Other Americas escorrega no erro? Como é que essas boas intenções levam-nos tão longe no espaço? E, mais importante, o que se pode aprender com esses equívocos? A preocupação com as convenções do grotesco e do pitoresco na representação da América Latina com certeza deve ter-lhe exercido algum efeito e a possível influência das imagens de Robert Frank não pode ser descartada. Entretanto, o problema pode estar na sua aderência à tradição das artes plásticas em mostrar as imagens com explicações mínimas, pois se limita em dizer em que país e que ano a foto foi tomada. Enquanto isso é bom para que a imagem se situe por si mesma e seja julgada de acordo com as suas qualidades formais, flui ao contrário do fato que seja naturalmente, talvez essencialmente, particular; isto é, a foto é necessariamente sempre tomada de um indivíduo principal (ou mais) num contexto especial durante uma fração de segundo altamente selecionada.

Em Other Americas a forma de narrativa que o autor escolheu está mais ajustada à construção dos símbolos eternos universais que na elucidação de particularidades daquilo que aparece nas fotografias. Publicadas de um modo que deixa um sentido de vácuo histórico, as imagens perdem suas referências específicas. Pode-se dizer que sejam mais símbolos do que documentos ou, para
levar a questão mais adiante, metáforas. Uma das maneiras de descrever o fotojornalismo é em termos do contínuo entre os pólos de informação e expressão. O fotojornalismo tradicional concerne mais à informação, as suas imagens são documentos predominantemente limitados a apresentar situações particulares. Como tal, carecem freqüentemente de expressividade para transformar situações particulares em declarações que transcendam ao caso individual. Ao contrário, o fotojornalismo artístico, como o de Salgado, tende mais ao pólo expressivo e as suas magens são símbolos que falham com freqüência em apresentar adequadamente a particularidade de cada situação, porque carecem de informação com a qual pode ser construída. Apesar de conscientes dos riscos de tais generalizações por atacado, podemos dizer que em geral as imagens dos fotojornalistas artísticos nos dizem menos acerca do que estão fotografando do que deles mesmos.

Talvez o melhor fotojornalismo funda informação e expressão, documento e símbolo, de tal forma que criem a metáfora: uma imagem que retém a particularidade de seu referente, mas, ao mesmo tempo, garanta uma verdade mais ampla que transcende o contexto imediato. Exemplo revelador é oferecido pela reportagem de Salgado sobre os “garimpeiros”, os mineradores de Serra Pelada, Brasil, que começou imediatamente depois da publicação de Other Americas e que constitui um capítulo de Workers (Trabalhadores). As suas fotos penetrantes capturaram a insanidade desenfreada da procura ansiosa da riqueza imediata em condições de vida e trabalho desumanas: as faces vazadas pelo delírio e a demência, as batalhas entre os mineradores e os soldados enviados para lhes policiar e os cenários em que homens-formiga se alinham em fila, uns com outros, sob o peso bruto de suas cargas. Essa reportagem bem poderia ser uma metonímia às infinitas aberrações de um mundo com tão poucas esperanças. E representa um avanço significativo ao Other Americas, pois aqui não há mistério na excentricidade; ao contrário, ela diretamente se deriva das condições manifestas horrivelmente em que esses pobres infelizes trabalhavam. Não é o caso de Other Americas, cujas imagens contêm tão pouca informação visual porque foram predominantemente tomadas de modo a eliminar os contextos sociais, políticos e econômicos.

As imagens dos garimpeiros são capazes de gerar metáforas com pouco texto porque as situações estão precisamente delimitadas requerendo pouquíssima intervenção verbal. Entretanto, a capacidade de construir uma narrativa de alguma particularidade usualmente é uma emanação das descrições escritas que as acompanham. A falta de texto em Other Americas significa que a conotação das imagens deriva de um relacionamento criado entre elas e o gritante sentido de miséria, desespero e enigma, resultado do fato de que não nos é oferecido nenhum outro modo de interpretação que faça sentido nessa acumulação de significados. A ausência de um contexto histórico articulado deixa o leitor boiando num vácuo anacrônico e algo eterno. Não há movimento na narrativa porque tudo é dado e nenhuma modificação permitida. Isso representa o tipo de coisa que alguns críticos do mundo desenvolvido esperam ver, vindo da América Latina, e para eles o “mistério” e o “estranho” do livro se relaciona a “um realismo mágico na tradição pósmoderna onde pobre e pobreza são vistos misticamente”.

Essa é uma leitura equivocadamente oferecida das suas intenções. Com certeza permanece na superfície e à vista somente o que se espera ver, em oposição ao seu, sempre repetido, argumento sobre por que trabalha em projetos de longa duração. Em várias ocasiões, Salgado tem articulado a necessidade de penetrar naquilo que esteja fotografando:

Quando se trabalha depressa o que se põe nas fotos
é o que você traz consigo – as suas próprias idéias e
conceitos. Quando se gasta mais tempo num projeto
você aprende a entender os seus sujeitos. Chega um
momento em que não é você quem está tirando as
fotos. Algo especial acontece entre o fotógrafo e as
pessoas que está fotografando. E conclui que elas é
que estão-lhe dando as fotos.

A sua maneira de fazer fotojornalismo colide talvez com a mais sacrossanta teoria de fotografia documentária mas, ao mesmo tempo, pode oferecer uma saída à ameaça que a alteração digital parece oferecer à credibilidade do meio fotográfico. Salgado tem discordado do tema consistentemente, quanto ao conceito do momento decisivo, idéia formulada por Henri Cartier-Bresson, que articulou-a assim: “Desejei intensamente agarrar, no confinamento de uma simples foto, toda a essência da situação que estivesse no processo de se desdobrar ante os meus olhos.”

Com toda imparcialidade a Cartier-Bresson, deve-se notar que também reconheceu que o gênero da estória-fotografia pode requerer horas ou dias e que ao se fotografar pessoas o fotógrafo deve sempre tentar substanciar a primeira impressão “vivendo” com elas. Porém, a noção de Cartier-Bresson do momento decisivo tornou-se uma espécie de metáfora-praga seguindo sempre de perto os fotojornalistas, para quem destilar uma simples imagem da essência de um evento depende da precisão da visão para descobri-lo e da capacidade técnica em capturar a fusão do social e do formalmente significante. É Salgado quem afirma: “Tenho tido muitas dificuldades com Cartier-Bresson pois discordo dessa idéia e muito da fotografia documentária.”
E declara que o fotojornalismo “requer algo diferente, a densidade da experiência da integração do fotógrafo ao contexto do que esteja documentando”. Assim, em contraste ao “Momento Decisivo” propõe o que chama de teoria do “Fenômeno Fotográfico”:

Você fotografa aqui, fotografa ali, fala com a gente,
compreende-a e ela lhe compreende. Então,
provavelmente, você chega ao mesmo ponto que
Cartier-Bresson, por dentro da parábola. E isto para
mim é a integração do fotógrafo ao sujeito de sua
fotografia... Uma imagem é a sua integração com a
pessoa fotografada no momento em que trabalham
tão incrivelmente juntos que a sua foto nada mais é
que a relação que você tem com o seu sujeito.

A preocupação com o “momento decisivo” se encontra no centro do problema das imagens alteradas digitalmente. Pedro Meyer, o fotógrafo mexicano pioneiro nesse domínio, clarifica que a sua teoria e prática nesse meio estão baseadas, em certa extensão, em capturar a justaposição de elementos significantemente em discordância dentro de um quadro; por exemplo, os migrantes mexicanos em suas tarefas de trabalho se debruçam ante um campo sob um cartaz-anúncio que oferece “SERVIÇOS LUXUOSOS DE SEU MOTEL”, enquanto um gladiador romano abre a porta de um táxi privado. Com justeza Meyer afirmou: “Eu não tive a intenção de esperar uma semana, dez dias ou o tempo necessário para que alguma coisa acontecesse e que, assim, eu obtivesse o ‘momento decisivo’ esperado por tantos fotógrafos... O momento decisivo específico não seria nunca encontrado se não tivesse sido criado.” Se o momento decisivo é encontrado pelo fotógrafo tradicional num golpe de tempo, posicionamento e de virtuosidade técnica ou se é “criado” pelo artista digital, a estética obtida se baseia na obtenção de um momento evanescente de significância visual. Ao contrário, a idéia de Salgado de que as mediações primárias da estética do documentário são a relação entre o que se pode estabelecer com os sujeitos e o conhecimento adquirido sobre a sua situação, é um fato que oferece uma aproximação operacional fundamentalmente diferenciada.

Essa poderia ser a posição com a qual esteve trabalhando na América Latina, em seu livro de 1997, Terra. Às vezes uma auto-crítica das falhas de Other Americas, usa em Terra extensos subtítulos publicados no fim do livro para contextualizar a imagética dos tristes tropiques ligando-a a forças sócio-econômicas. Igual importância está em que Salgado desenvolveu uma narrativa que documenta não só a opressão, mas também sua resposta dialética: a luta coletiva. A estória de Terra se desdobra, em essência, em duas partes: a primeira metade do livro se compõe de fotos previamente publicadas em Other Americas, mostrando o povo, sua terra, trabalho e privações. As imagens enfatizam como “a dignidade e a pobreza são companheiras inseparáveis da população rural” e aqui se vê pouco do desespero e da miséria misteriosa em que estão enclausurados em Other Americas. As fotos de mãos retorcidas, linhas faciais aprofundadas, e de pessoas trabalhando duro no campo oferecem um pano de fundo para a segunda parte de Terra: as fotos de 1996 da migração urbana e da invasão de propriedades rurais. Esta estrutura oferece um mais amplo sentido histórico aos problemas e prospectos da América Latina.

Ao fotografar o movimento em direção à cidade grande e sua concomitante desumanização, o mesmo Salgado migra para uma área previamente ignorada. Note-se que o faz com muito sucesso, naquilo que seu trabalho se compara favoravelmente ao melhor de tantos outros ótimos profissionais latino-americanos para quem a crise urbana tem sido foco. A fuga para as cidades tem sido a reação típica à monopolização da terra pelos interesses do latifúndio e das plantações de monocultivo que controlam a vida rural brasileira. As suas imagens documentam a realidade difícil e dura das desumanas condições de vida que esperam os migrantes: crianças sem-teto, vivendo em caixas de papelão, apertadas, comendo a sua ração diária de pão; recém-chegados, dormindo próximo às estradas ou em superabarrotados e amedrontadores albergues noturnos; sob as redes elétricas malajambradas em postes improvisados, crianças andam de bicicleta à noitinha em estradas de terra, junto a pilhas de lixo; numa imagem reminiscente às de Jacob Riis, pessoas vivem debaixo de estradas densamente trafegadas, entre paredes de compensado e pilares de suporte; as prisões assemelhadas aos pontos de ônibus são quase indistinguíveis.

Esses testemunhos pungentes à derrocada da migração, tanto dos emigrantes quanto da sociedade, são sublinhados numa seção final, “Migrações às cidades”: um conglomerado de bebês abandonados sob o pano de fundo do perfil da cidade, por detrás, servem como espelhos refletores mútuos e como metáforas do futuro. Só então Salgado deixa patente o seu compromisso com as gerações futuras no retrato de crianças, que oferece uma ponte entre o capítulo final de Terra e o Movimento dos Sem-terra, o MST. Esses retratos são imagens maravilhosas de lindas crianças cujas faces sujas e roupas rasgadas deixam uma impressão duradoura. Neste contexto é bom lembrar que ele tem sido criticado por esteticizar a miséria; contudo, Julian Stallabras observou:

O que significa fazer do sofrimento dessas pessoas
uma forma de arte? Em resposta a essa questão, a
primeira coisa a se perguntar é, que alternativas se
apresentam? É dificilmente concebível que se possa
descrever de modo distante e anestesiado muito da
fotografia contemporânea, adequada a mostrar a
fadiga mental suburbana... Em seu forte plano
formal, as fotos de Salgado revivem as fotos do
modernismo com uma ênfase na geometria e no
contraste visual. A beleza é posta a serviço do
humanismo envelhecido...”

Ensinar às pessoas as novas maneiras de ver talvez seja menos importante neste momento do que a questão do que virá a ser o futuro das crianças do Brasil; eles introduzem esta interrogação articuladamente aos seus olhos inquisitivos. Assim, a resposta real à crítica feita essencialmente por comentadores do mundo desenvolvido pode ser que eles não possam entender completamente as perspectivas que Salgado oferece na causa em questão.

A última seção de Terra enfoca a luta pela terra. Aqui, os olhos tristes dos mais velhos de Other Americas – símbolos misteriosos da morte – foram substituídos por repressão, luta e criação de uma nova vida em escolas comunitárias e residências nos novos assentamentos. Imagens de corpos furados de balas e ensangüentados, caixões empilhados em caminhões e a dor das mães de camponeses mortos, estão ligadas diretamente à polícia militar paga pelos proprietários. Enquanto isso, os camponeses levantam as suas ferramentas e foices em triunfo, pelo que Salgado documenta da tomada de terras pelo MST, que tem aumentado a migração como resposta à falta de terras para cultivo familiar.


Entre essas imagens tomadas desde 1980 e que oferecem um fundo para a primeira parte de Terra, estão outras que foram originalmente publicadas em Other Americas. Esta estratégia abre a questão da contextualização, pois em Terra adquirem, com freqüência, significados diferenciados dos anteriores. Talvez o efeito mais imediato dessa contextualização seja o desaparecimento do enigma; agora entendemos porque essas pessoas parecem tão tristes: não possuem terra onde produzir comida, nem futuro, para si mesmos e suas crianças, outro que a miséria, a doença e a morte. A sua pobreza é tamanha que até a igreja fornece caixões temporários que são fornecidos somente para levar os mortos aos cemitérios, onde são enterrados sem eles, pois são usados de novo. Ao serem dadas informações sobre como subsistem ante essas deprivações, de repente as imagens se esclarecem onde antes era impenetrável: a fotografia do homem sobre a cova rasa de uma ulher morta, sem o caixão, cessa de ter a conotação grotesca e se torna uma crítica social articulada.

Salgado busca retrabalhar as imagens ao publicar diferentes versões de algumas das cenas de Other Americas. Sinaliza explicitamente a intenção dessa reescritura abrindo Terra com a foto de crianças deitadas no chão ao lado de seus brinquedos de ossos de animais e, mais adiante, incluindo outra imagem delas que em atitudes dinâmicas atestam a sua atividade. A cena em que as pessoas se postam ante as covas separadas, que parece significar um símbolo macabro da sua alienação, é também reescrita em Terra, ali substituída por duas outras fotos: numa tomada de pessoas se deslocando em direção ao cemitério num funeral e noutra, uma imagem dessas pessoas momentos depois, enterrando uma criança.

Em geral a análise fotográfica tem se concentrado nas estruturas imanentes das imagens, em relações intra-quadros. Entretanto, as fotografias são textos que possuem uma natureza ambígua e polissêmica. A sua capacidade narrativa é frágil e o seu significado é com freqüência determinado pelo contexto imediato criado na publicação: na síntese de texto, em títulos e em foto-ensaios extensos como os de Other Americas e Terra, no significado acumulado dessas próprias imagens. Em Other Americas a ausência de texto escrito e os seus títulos mínimos criaram uma situação em que o significado imagético foi determinado inteiramente por efeito cumulativo. Dado que muito das imagens de pessoas sombrias, até mesmo angustiadas de dor em suas expressões, sempre estejam na presença de alguma forma da morte e também divididas entre si por alguma estrutura formal, o mistério, a dor e a separação, algumas sensações por elas evocadas. Já em Terra, Salgado ofereceu um contexto histórico para o entendimento da fonte dessa doença e criou uma narrativa que se move da opressão passada ao presente de luta.

Other Americas foi o primeiro passo na tentativa de se reconectar à sua terra nativa, depois do exílio. Para isso, afirmou: “Para ser possível viver na Europa eu tinha que voltar à América Latina”. Como muitos latino-americanos, deixava a sua terra natal de modo a descobri-la. Assim, começou esse reencontro, acomodando uma poderosa imagética ao paradigma grotesco e pitoresco, as únicas formas acreditadas com as quais podia falar de sua cultura no mundo desenvolvido. Se este livro encorajou as expectativas e desejos daquela audiência, Terra representa um esforço para ajudar os brasileiros a obter aquilo de que carecem.

Suas iniciativas recentes de fotografar a América Latina levaram-no às problemáticas mais recentes da emigração e transculturação. Migrations utiliza a mesma estrutura empregada com tanto sucesso em Terra: as imagens são apresentadas num formato artístico, permitindo que se posicionem sós em todo o livro, enquanto textos explicativos são oferecidos num livreto anexo, inserido no final. O fotógrafo devotou mais de um quarto do livro à América Latina. Abrindo-o com um índio brasileiro, tenta usar o último e mais frágil dos vestígios das civilizações pré-colombianas para construir uma nostálgica alusão ao que deva ter sido antes da chegada dos europeus. Aqui ele cria uma disjunção entre imagens idílicas de famílias indígenas reunidas em volta de piscinas naturais na floresta e textos que descrevem a débacle do paraíso: as culturas nativas têm sido empurradas à beira da extinção pelas doenças e invasões, a devastação da floresta as tem levado à erosão, da qual não há retorno. Dessarte, o autor nos presenteia com belíssimas imagens de jovens índias, descrevendo como são abusadas sexualmente pelos mineradores que penetram em seu território; mostra-nos umas criancinhas, debruçadas em suas redes, e diz-nos que agora são feitas de fibras sintéticas, um dos muitos produtos em que os índios dependem dos novos invasores; retrata um chefe guerreiro indígena, mas avisa-nos que os índios estão se pauperizando em sua própria terra.

As seções sobre o abandono das terras do Equador mostram as falhas dos projetos de modernização nas culturas rurais do presente. Algumas dessas imagens são algo pitorescas: pastoreadas por uma indiazinha em roupas típicas, ovelhas pastam num monte, enquanto um extenso vale é visto abaixo. Outras delas podem mesmo ter aparecido em Other Americas: uma criancinha com um olhar severo e roupas esfaceladas trabalha num campo; uma mulher e algumas crianças com expressões temerosas juntam-se fora de casa. Entretanto, o livreto explicativo contextualiza essas imagens, informando-nos que, devido às terras mais férteis no coração do vale terem sido monopolizadas pelos ricos rancheiros de gado, os homens foram forçados a migrar para outras cidades, deixando o trabalho rural para as crianças e mulheres. Segundo Salgado, a transformação da vida doméstica entre os camponeses é um fenômeno recente: “Há vinte anos as responsabilidades familiares eram distribuídas diferentemente: as mulheres cuidavam da casa e os homens trabalhavam no campo.”

Alguns escolheram resistir e emigrar sempre com uma resposta de repressão por parte dos proprietários e dos governos. Salgado detalhou essa dialética nas seções sobre a rebelião neo-zapatista em Chiapas e o MST no Brasil. Ali documenta as pequeníssimas comunidades organizadas pelos índios de Chiapas, em áreas liberadas dos paramilitares empregados pelos ricos e treinados pelo exército mexicano. Duas imagens tomadas nesses campos retratam o surrealismo pósmoderno, não raro associado ao México: largas pranchas de plástico, cartazes de anúncios na cidade do México, foram obtidas pelos que os apóiam e lá enviados para ajudar a montar abrigos em áreas montanhosas de clima frio e úmido. Essas formas de incitação consumista urbana se tornaram paredes dos casebres que os abrigam, em que pinturas maiores que o natural de belas louras se posicionam justapostas ao moreno dos índios com que coabitam. Tanto em Chiapas como no Brasil, Salgado poderosamente representou a vida diária das pessoas que se recusaram a acompanhar as demandas das regras neo-liberais, e as imagens de corpos ensangüentados e de caixões fechados demonstram o preço que estão dispostos a pagar na batalha para lavrar e possuir a terra.

A vasta maioria das pessoas que deixam as terras é empurrada às megacidades pela pobreza rural causada pela monopolização da terra por latifúndios, enormes áreas de ricos e poderosos e com freqüência de proprietários ausentes, apesar da existência de desastres naturais, tais como o furacão Mitch, que podem contribuir intensamente nesta migração. Salgado mostra as favelas que cresceram ao redor da cidade do México e de São Paulo, documentando a desintegração da família que leva ao comportamento auto-destrutivo, tal como o hábito de cheirar cola e fumar crack, pelos jovens que vivem pelas ruas das cidades. Cenas de lixeiras onde os mais destituídos escolhem os seus refugos lado-a-lado com os urubus, e imagens de criancinhas caminhando debaixo de linhas elétricas engatilhadas perigosamente, o que clarifica como é enganosa a promessa da urbanidade ao pobre obrigado a migrar para as cidades.

A transculturação dos migrantes que se mudam para as cidades é levada ainda a outro nível pelo processo de transnacionalização da imigração da América Latina aos Estados Unidos. Salgado reconstrói a “Passagem pelo México” seguida por muitos que deixam Honduras, Nicarágua, Guatemala e El Salvador, à procura de uma nova vida. Em poucas imagens oferece uma ilustração do tema, enfocando principalmente nas experiências daqueles que viajam de trem. As fotos da fronteira México-Estados Unidos se resumem à área de Tijuana e San Ysidro e as imagens são dominadas pela “Versão norte-americana da grande muralha da China”, uma barreira gigantesca de aço erigida neste ponto para frear a passagem ilegal: homens olham através dela em direção à terra prometida, indivíduos dormem à sua sombra esperando pela escuridão, migrantes ilegais, aprisionados pela Patrulha de fronteiras, correm em sua direção para cruzar de volta ao México e fugir da humilhante deportação. Há também fotos de migrantes que foram presos, a mais poderosa delas em que mostra dois deles juntos e agrilhoados, com o oficial norte-americano por detrás.

A sua visão da fronteira é negra e está em contexto com o demais de Migrations, se bem que pareça super-enfatizada, frente às histórias desgraçadas do genocídio de Ruanda, dos Curdos imprensados entre o Iraque e a Turquia, ou a situação desesperadora dos Palestinos, ainda sem pátria, depois de cinqüenta anos. Certamente muitos mexicanos que não desejem sair de seu país são forçados a fazêlo, à falta de oportunidades econômicas. Mesmo assim, a migração é uma opção que pode ser escolhida por aqueles que não desejem se ver presos na armadilha da existência tradicional, que desejem mudar as suas vidas. Os migrantes são com freqüência o que há de mais dinâmico e decisivo numa população, como se nota no otimismo demonstrado dos braceros (trabalhadores braçais) mexicanos em 1940, captado pelos Hermanos Mayo, que deve ao menos ser considerado como parte da história. Muito das imagens da fronteira mexicano-americana publicadas em Migrations apareceu primeiro no foto-ensaio de Salgado em Rolling Stone, entretanto, a última foto desse artigo, de um homem com seu filho, transborda em otimismo e força, apesar das difíceis condições de vida, e não foi incluída no livro.

Salgado é uma nova raça de fotojornalistas, título que assume com orgulho.
Rejeita a noção de que cria arte, asseverando que o seu interesse primário seja a reportagem do momento histórico em que esteja vivendo, mostrando que a base material de seu trabalho está antes de tudo na imprensa. Ele financiou os seus projetos de longa duração publicando diversas previews (prévias) tais como artigos em revistas como The New York Times Magazine, Rolling Stone, El País Semanal, Actuel, Newsweek, The Sunday Times Magazine e Geo. Porém, nenhum outro fotojornalista teve até o momento um tal comando de exibições e espaço que ele tem tido, ou tem-se engajado em projetos e assuntos tão amplos e auto-envolventes. A enorme temática individual de suas exposições – Workers e Migrations – resta sem paralelo na História da Fotografia, para não dizer do Fotojornalismo. Os longos e pesados livros em que essas imagens aparecem são igualados somente aos trabalhos dedicados à carreira inteira de clássicos da fotografia documental e do fotojornalismo, como Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, David Seymour, Dorothea Lange, Walker Evans ou Gene Smith. Que um fotógrafo Latino Americano tenha alcançado esse reconhecimento é algo extraordinário. Como foi capaz desse feito?

A trajetória de Sebastião Salgado como fotógrafo documental pode ser caracterizada como a de alguém que primeiro seguiu as formas estabelecidas de técnica e assunto, enquanto ia explorando as possibilidades da forja de sua visão própria; isso talvez possa ser apreciado mais facilmente ao se considerar as transformações das formas com que tem fotografado a sua terra natal. Começou reproduzindo o paradigma pitoresco na representação daquilo que poderia ser considerado como as noções profundas e autênticas da cultura rural latinoamericana, replicando já bem trabalhadas formas do exótico, diferenciadas daquilo que Europa e Estados Unidos esperavam, e estavam acostumados a ver. Entretanto, veio a reconhecer que para poder dizer afinal algo realmente de novo sobre a sua terra teria que avançar além da superfície das imagens. Isso o levou ao trabalho próximo ao Movimento dos Sem Terra, integrando-se ao assunto para que esse relacionamento pudesse se tornar uma expressão estética da luta em que estavam engajados. Mais tarde aplicou o mesmo método a problemas contemporâneos da migração e da transculturação. A validade da fotografia documental e do fotojornalismo deposita-se na inserção do fotógrafo nas realidades que deseja retratar, na teoria do fenômeno fotográfico, na prática do compromisso com os oprimidos e na capacidade de estender os limites do aceitável, temas aos quais oferece um modelo para os fotojornalistas do futuro.

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